terça-feira, 23 de junho de 2009

O milho na gastronomia madeirense (II)


0 milho era o alimento das classes pobres e a ausência da farinha atingia principalmente estes, por isso o articulista do DN apelava, em Agosto de 1943, às classes mais abastadas, que lhe reservassem este privilégio. «O milho é o alimento
das classes pobres, das classes populares(...) o milho, repetimos, é o alimento dos pobres. Assim aqueles que o podem dispensar, deixem-no aos pobres porque para as almas bem formadas, deve constituir amargura, provocar, impensadamente, as faltas de alimentação nos lares onde o dinheiro não abunda».
Mais tarde, no Inverno de 1945 em face de novas dificuldades as páginas do mesmo jornal abriram-se para expressar o grito plangente ecoado por todos os madeirenses em surdina. 0 Racionamento de 1 kg semanal por cabeça propiciou o seguinte comentário: «Não era bastante para as necessidades duma população que tinha afeito a sua economia doméstica ao consumo quase diário daquele produto (...), numa terra onde
o milho se podia chamar o pão-nosso de cada dia».
Nessa altura a Madeira tinha necessidade de importar anualmente 13.000 toneladas de milho.
Mas aqui, mercê da iniciativa da Comissão Regulador do Comércio de Cereais, a situação não foi tão gravosa como havia sucedido no decurso da Primeira Guerra. A política de intervencionismo económico definida por Salazar levou à criação em 1954 do grémio do milho colonial português e em 1958 surgiu a delegação madeirense da Junta de Exportação dos Cereais, que passou a coordenar todo o processo de abastecimento e fixação de preços do grão e farinha.
Foi responsável Ramon Honorato Rodrigues, que em 1962, no momento de extinção, publicou uma memória sobre os serviços prestados pela junta que presidiu. Por ai se ficou a saber das dificuldades sentidas nos anos da guerra e da acção da Junta e Governador Civil para solucionar a situação por meio do racionamento do
milho e da solicitação de carregamento à ordem do governo.
Para termos uma ideia das dificuldades basta-nos aludir à capitação estabelecida pelo racionamento e relacioná-la com a média anterior à guerra: entre 1937-39 ela foi de 123 kg/ano, enquanto de 1942-44 passou para apenas 80 kg. Mas houve anos em que a situação se agravou: por exemplo em Março e Abril de 1945 a ração semanal por cabeça era de apenas 550 gramas de milho. A partir de 1941 o racionamento foi determinado por concelho de acordo com o número de cabeças de casal, variando o quantitativo conforme os stocks disponíveis.
No último quartel do séc. XX, o milho branco escasseou nos mercados, sendo substituído pelo milho amarelo, menos apreciado, deixou definitivamente de ser a base da gastronomia madeirense, continuando até aos nossos dias a ser uma iguaria apreciada, mas cada vez mais rara à mesa.
Curiosamente, são os restaurantes que continuam a cozinhar o milho e a fritá-lo para gáudio dos comensais, residentes e turistas, sobretudo os apreciadores de espetada.

O milho na gastronomia madeirense (I)


Calcula-se que o consumo do milho ronde os 7000 anos, com origem na América Central, sabendo-se que as civilizações astecas, maias e incas, alimentavam-se e tendo no cereal uma relação de cunho religioso.
Reza a história que até o descobrimento da América, em 1492, os europeus desconheciam por completo a existência do milho. Quando Cristóvão Colombo levou apresentou algumas sementes de milho, terá causou grande sensação entre os botânicos de então.
Linneus, na sua classificação de gêneros e espécies, denominou-o por "zea mays", do grego "zeia" (grão, cereal), e em homenagem a um dos principais povos da América, os maias. Hoje, seu consumo abrange praticamente todas as partes do mundo.
Na Madeira, a entrada do milho na alimentação acompanha a tendência do resto do país até ao século XIX, visto até então a batata, a semilha, o ínhame e os cereais, mormente o trigo, constituírem a principal base alimentar da população.
Com a crise da semilha, em 1841, provocada pelo míldio, os madeirenses sentiram necessidade de promover uma cultura de substituição, optando pelo milho. A fome teve uma expressão significativa, obrigando as autoridades de então a enviar uma delegação a Cabo Verde com intuito de serem aprendidas técnicas de plantação em escala e na aquisição de algumas toneladas do produto.
O milho constituiu a partir dessa altura a base alimentar da maioria da população madeirense, pese embora, as famílias mais abastadas, apenas esporadicamente consumissem o milho, como acompanhamento de peixe.
Por diversas vezes a imprensa refere que o milho era o principal alimento do povo. E quase todo ele era importado do estrangeiro, ou das colónias: a ilha produzia uma ínfima parte daquilo que consumia. O milho era servido de diversas formas na mesa rural madeirense: papas de milho (cozido), milho escaldado (sopa) e estroçoado. Segundo o Diário de Noticias, do Funchal, de 4 de Setembro de 1941, “o milho é, há muitos anos, um elemento fundamental da alimentação das nossas classes menos remediadas. Barato, de fácil preparação e de forte poder alimentar, nenhum produto
da terra o pode substituir ou sequer igualar”. Dai, deverá ter resultado a expressão popular: “Vai-se ganhando para o milhinho...”.