quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A literatura como fonte de um roteiro - a do comer português


Para quem vem lendo ou ouvindo, seja nas conversas do dia a dia, entre Amigos, seja em momentos em que com maior minúcia vem ao acaso falar destas coisas de comer, é já lugar comum começar eu por estabelecer a íntima relação entre a VIDA e CULTURA, partindo do entender este último conceito, como SÍNTESE DA ACÇÃO DO HOMEM ATRAVÉS DOS SÉCULOS, como aprendi um dia com o Professor Vitorino Magalhães Godinho, e fácil me foi aceitar como a melhor acepção, que não a única, para o sentido de CULTURA.
Tomada assim, a CULTURA acompanha o Homem desde o primeiro vagido, ou melhor, começa a constituir-se desde esse momento, a partir de todos os seus actos, mesmo quando parecem insignificantes.
Este nascer da Cultura como companhia inseparável do Homem desde sempre, trouxe-me à lembrança, uma saborosa história, que pouco ou nada tem a ver com o que estou tratando, mas que não resisto a contar, o mais que não seja para amenizar este filosofar, que abriu a conversa.
É conhecida a rivalidade entre os Dominicanos e os Jesuítas, pelo que estes até passaram maus bocados, em Portugal, quando os discípulos de São Domingos controlavam a Inquisição.
Ao empregar o termo rivalidade arrisquei-me a ser acusado de estar recorrendo a um eufemismo. O facto é que me furtei a dizer inimizade, por me parecer pouco cristão e contraditório com o espírito de caridade que deve existir entre os Homens, sobretudo quando se dedicam à catequese dos ensinamentos de Cristo. Do mal-estar entre as duas Ordens, nasciam mal entendidos ou saborosas anedotas como passo a contar.
Numa pequena povoação cruzavam-se diariamente um dominicano e um jesuíta. Ao professo da ordem dos três 55, intrigava a seguinte questão: -Cristo, quando nasceu, chorou, como a maioria dos humanos, ou, Senhor Deus, feito Homem, terá sorrido para os que o rodeavam - Mensagem de Glória, ao Mundo, desde O a ele chegar? Desejo de encontrar a solução levou o problema ao subtil dominicano.
Pensado por ambos, a "solução" brilhou no espírito do dominico que, encontrando o Jesuíta lhe terá dado conhecimento do saber achado: - O Senhor Deus, Menino Jesus, teria chorado como prova de mal-estar. E mais: explicitou a razão. É que, olhando à volta e dando com a vaca e o burro terá exclamado: - E esta a Companhia de Jesus!
Vá de histórias e vamos à História da Alimentação e da Gastronomia - diferentes -, decorrida dos Livros que nos dizem ou fantasiam do que o Homem comia, por necessidade, ou prazer , isto é, por obrigação em busca da sobrevivência, ou escolha, usando o paladar com que Deus o dotou. Em duas palavras: com preocupação restaurativa ou gastronómica.
Partamos do princípio que o homem se fez comendo e cozinhando. E isso lê-se nos "livros", permitindo-me dar ao termo um elástico sentido.
Se não se aceitar como expressão de "livro" a Leitura possível das gravuras pré-históricas, onde vemos o homem caçando, pescando, cozinhando, vamos encontrar na antiguidade as primeiras manifestações que conjugam literatura e gastronomia. O homem, comedor e cozinheiro (geralmente a Mulher), lá está nas pinturas egípcias, nos afrescos, nos cantos religiosos, na descrição dos banquetes rituais, nas lendas. Dele nos dá conta o celebrado Código de Hamurábi, definindo leis a partir de géneros como cereais ou a cerveja.
Sabe-se documentalmente do beber-se vinho na Mesopotâmia e no Egipto por volta de 3000 a.c.; referência escrita encontra-se na Epopeia persa de Gilgamesh, no Dilúvio. Os Clássicos da Grécia e Roma forjam lendas para explicar factos: -E o vinho como oferta de Dionísios, bebida do pantagruélico e dantesco Polifemo, também comedor de carneiros - vivos, inteiros, mal os lobrigando com o seu ciclópico olho no meio da testa.
É o Queijo, feito nas Geórgicas de Virgílio, passado aos homens por favor dos míticos amores de Cirene e Apolo, de onde teria nascido Aristeo, a quem o centauro Cirón teria revelado o segredo; ou, lendariamente, nascendo das tetas de Amaltea que, amamentando Júpiter, coagulava o sobrante para manjar dos deuses. Queijo que, com origens histórico-lendárias, integra a Literatura, mais remota: Homero fala dele, pondo Circe a dá-lo a comer a Ulisses e aos argonautas; Polifemo integra-o na sua dieta de alarve; Aristóteles faz-lhe referência; Xenofonte e Antífano também; Platão têm-no imprescindível para os habitantes da República.
Dos clássicos, em regressiva e progressiva didáctica, aos livros fundamentais da Religião Cristã.
O Velho Testamento lá referencia o Mel e o Leite - que escorriam, prodigamente, na Palestina; o Maná do deserto, a queda das codornizes, os cabritos e os anhos dos sacrifícios; o Pão e o Vinho, que terão fundamental papel no Novo Testamento; o Vinho, bebido puro, é comum. O aguado serve ao Profeta Isaías para rotular os hipócritas.
Do Velho Testamento à Boa Nova. O Pai mata o vitelo gordo para festejar a chegada do filho pródigo. Cristo alimenta a multidão que o segue para ouvir o extraordinário Sermão da Montanha (aquele dos lírios do campo e das aves do céu) com os multiplicados sete pães e dois peixes e, após ele, depois do grande jejum no deserto, o demónio tenta o Senhor com o Pão que O incita a fazer das pedras.
No momento máximo da consagração da primeira Missa, na última ceia, lá estão de novo o Pão e o Vinho, passados de alimento do corpo a bens do espírito. Vinho que Jesus já usara para o seu primeiro Milagre, nas Bodas de Caná e do qual podemos ler no Eclesiastes: "Bonnum vinum laetificat cor hominis".
O galo, de qualquer capoeira ou calçudo pica no chão, vai cantar após a traição de Pedro. O mesmo Pedro que na Epístola a Timóteo, sabendo que ele só bebia água, lhe recomenda: "Toma um pouco de vinho por causa do teu estômago e das várias enfermidades" de que padeces.
Talvez do cumprimento muito à letra do Evangelho se hajam clérigos feito bons garfos e bons copos, ou quiçá seja mais a fama que o proveito, como alertava aquele padre, castigando o comilão que após lauta refeição dizia: -Comi que nem um Abade! - retorquindo-lhe: -Que nem um alarve, seu bruto! Abade sou eu e não comi nem metade. Mas isto, se entrarmos em histórias de comedores e de padres, faz-se noite e não comemos nada.
Vindos do longe da História, subamos no tempo e baixemos à nossa Literatura (QUE O QUE NOS IMPORTA É O COMER PORTUGUÊS). Aí vamos encontrar Herculano, em Guimarães, servindo festivo almoço, no velho Castelo de D. Teresa e do Conde de Coimbra, onde o Senhor da Maia, cujo nome uso, teve de conseguir lugar derrubando o banco dos fidalgos galegos do Senhor Peres de Trava. Almoço de que partilhava o Abade de Guimarães: aquele que havia de morrer enfartado com uma plangana de dobrada, o mesmo prato que já anos antes matara o Bispo de Santiago, como nos diz histórico e legítimo documento, factos que vêm pôr em questão a origem das Tripas portuenses, que vamos encontrar, contemporânea dos começos da nacionalidade, a serem saboreadas no Arco de Santana do Senhor Visconde de Almeida Garrett, e outro Visconde, o Senhor Camilo, titular de Correia Botelho, vai dar a comer ao falso D. Miguel de Calvos, da Brasileira de Prazins, e ao patusco Basílio Fernandes Enxertado, nas Aventuras com o seu nome, livro onde também se comem gulosos doces do Convento tripeiro de Santa Clara -manjar branco e pastéis. Com o Senhor de São Miguel de Seide muito, aliás, podemos comer! Desde o Bacalhau -que o patife do Fístula abominara no Seminário, e a que preferia pastéis de camarão (A Corja) -, assado, no Hotel da Boavista, "No Bom Jesus do Monte"; o perdido Salmão de Viana (tristemente substituído pelo corriqueiro que peixarias de hipermercados nos oferecem, vindos de águas estranhas ou "aviários") -Salmão fartamente ingerido nas Estrelas Propícias, de cuja a ingestão e indigestão, decorre a precoce viuvez da bem nutrida e, quiçá por isso, alegre Ema; as Ostras cruas da Águia d'Ouro e da Foz; o Arroz de Marisco; Sável Assado, em S. Roque da Lameira ou frito, em Valbom, com aquela Salada dos anexins. Salpicões, só, ou com uma. fritada de ovos das galinhas de Calvos, pela corada mulher do João do Reguengo (C Regicida) ou pela enganada Teodora Barbuda de Figueiroa, Morgada de Travanca, "mais feia do que manda a razão que seja uma mulher honesta" (A Queda de um Anjo ).
Sobremesam-se em Camilo, Forminhas de Braga -ao que suponho doçaria desaparecida; sintrenses Queijadas da Sapa, Queques da Palaia, minhoto Pão de Lá, castanhas de ovos e toucinho do céu, singelos rebuçados de avenca e as "ambrosíacas rabanadas" da vimaranense Mafalda de Teive; enquanto se bebe vinho da Companhia de 1815. Resiste (ainda em Camilo) o comer popular com as celebradas batatas com a tona, roladas no Sal e as Sopas de Leite de Terras de Basto, as Iscas de Bacalhau, louro Leitão, o chorume da vitela de Baltar, ou o rancho de couve galega e feijão fradinho, que a tropa comia em 1844.
Legítimas eram então as nele comidas frigideiras de Braga, hoje perfeitamente desvirtuadas. Paralelamente intromete-se a criticada comida afrancesada do célebre Jantar ao Araújo & Filhos (Eusébio Macário ): os Vol au vent, cottoletes de veau sautés aux tripes, recheios au gratin. ..
E chega de Camilo. Vamos a Eça, a correr.
Aquele fantástico episódio do ficcionado jantar, no 202 dos Campos Elísios, com o fantasioso peixe encravado no elevador. Aqueles linguados de que Zé Fernades, ainda em Paris, diz: "os malvados frigiram-se rancorosamente contra mim!".
O "não jantar" em Casa do José - péssimo, nem as galinholas o salvaram - servidas sem noção: "já não se janta em Paris!" "O Jantarinho de suas incelências" - em Tormes. O das Mulheres Palreiras; da Sopa que tinha fígado, moela e rescendia; do Arroz de Favas -divinas. Os ovos mexidos com chouriço, comidos em Sintra. Os jantares na Lawrence. As espanholadas por essa Lisboa. Os comeres no Mata. Os francesismos no Universal: - chic menino, chic! "Pandegazinha, mulherzinhas". ..As Ostras ainda, da Capital; ou com Chablis, para Carlos da Maia; ou as do Mandarim - de Nimpó. As Queijadas, de Sintra, claro - da Sapa; as da incumbência do Cruges.
Os Queijos: da Serra, o Camenbert, fazendo fim a umas sardinhas de Nantes, em conserva (quando ainda não tínhamos as de Matozinhos), uma terrinazinha de foie grãs, uma perdiz, razão mais do que suficiente para deitar abaixo "três garrafas de vinho de Borgonha". As petit pois - à la Coen.
As "Sopas, os Hors-d'oeuvres, as entradas, o assado, caça, entremets - uma coisa elegante, um jantarinho de quinze libras" esportuladas pelo Artur, na Capital.
As trutas, o veado, o javali e a popular cabidela do Abade de Cortegaça, um dos prazeres do padre Amaro - o outro ia depenicá-lo na Vieira de Leiria, como hoje ali se vai ao Arroz de Marisco, ao Coelho.
Volte-se ao Minho e passe-se às Beiras com Mestre Aquilino: trutas e salpicões; "feijoadas com muita molhanga e pimentinha"; jantaradas no fim das caçadas ou do compasso beirão de Domingo de Páscoa - queijos, ovos, folares, carne assada, chorudas galinhas pingantes; que sei eu!?
Recorde-se a Angústia, sentida por António, no "jantar mensal", com o aburguesado e acomodado Gonçalo, no Chave D'Ouro, aquele quase sumido Restaurante da 1º de Dezembro que Luís de Sttau Monteiro descreve primorosamente como lhe parecendo uma "gare de caminho de ferro". Uns provocantes lagostins. Umas perdizes - "Não estão nada más as perdizes, pois não?" Uns espargos. Tudo precedido de um Whisky, "trocado" por um embaraçoso: Gostas de Logan's, António?" Mas...Então não tínhamos resolvido beber Whisky?" Que saboroso, este angustiante "Angústia para jantar", do meu saudoso Amigo Luís de Sttau Monteiro! Manuel Pedrosa das Críticas Gastronómicas de "O Diário de Lisboa", a Guidinha dos fabulosos Bilhetes de "O Diário Popular".
Saboreiem-se agora, os conflitos humanos do Jantar de um outro Gonçalo, com a Teresa e Duarte, servido por Alçada Baptista em Nós e os Laços (título que origina - ouvia-a do Autor - uma história fabulosa que um dia irei contar). Desse jantar, dizia, ficámos tão só a saber do telefónico convite de Duarte: "Porque é que não jantas connosco?" e do final beijo de Gonçalo a Teresa, complementado com o social - "Obrigado pelo jantarinho." - nada, estou como o outro, que implique um "digestivo".
Melhor ficamos, páginas à frente, quando de novo se sentam à Mesa a Teresa e o Gonçalo, em São Pedro de Sintra, com uns anunciados peixes frescos: "Tenho óptimo cherne, rodovalho com grelos, e Gonçalo secundou-a, pedindo pressa antes que se enchessem de pão. (Anote-se por curiosidade que neste Nós e os Laços as personagens principais têm os mesmos nomes que o legal matrimónio que nos dera Sttau Monteiro. Só que ali - na Angústia - há uma ilegal Alexandra, que aqui não aparece).
O mesmo António Alçada Batista, no pungente Catarina ou o Sabor da maçã - símbolo do mal, pela carga sócio-religiosa que lhe deu a tentação do Paraíso, percorre, gastronomicamente um diversificado, mas natural caminho: Café de apresentação, numa pastelaria do Carmo. Amor, em colares, no período eufórico e feliz de Catarina, que dele se alimenta. Amor e pequeno-almoço - café com leite e torradas, na cama, em terno tabuleiro, por certo com uma rosa vermelha de paixão, no auge desta. Carinhoso jantar com batatas assadas no forno, grelhada carne, temperada de véspera e queijo da Serra curado - "Ficámos ali a comer e beber..." - e o amor a esfriar. Triste frango assado, embrulhado num papel, e arroz apressado, sublinham o desenlace: queda de um anjo, o fim, a morte por esquecimento, "que não conseguiu apagar o (...)remorso."
Também eu me remordo do quanto os macei, com devaneios de velho do Restelo - em meu socorro, e desculpa: estiveram à mesa seis escritores, que bem contados foram sete: Herculano, a fugir, Garret, vagamente, Camilo, como prato de fundo, Eça, sublinhando aquele e como separador, fazendo boca, Aquilino. Quando ainda havia apetite, um saudoso Luís de Sttau Monteiro e um profundo António Alçada Batista, insuficientemente revisitados.
Querem mais para fundamentar, na verdade da nossa mesa, o Comer Português, que, mais do que interesses económicos, nos cabe defender, a nós, Confrarias de Portugal? Vão, com tempo. Aos nossos escritores. Leiam, registem, difundam o que escreveram tantos prosadores ou poetas, pois, creio que nem um só conseguiu furtar-se à força imperiosa que a Gastronomia exerce sobre a Literatura.
O caso é que, na Literatura, ninguém foge à Gastronomia, como não foge à cada um ao seu destino. Com esta "certeza", encerro com o profundo humor do Poeta-Gastrónomo João Penha, o tal que trazia aos seus versos os Paios de Lamego, os Presuntos de Melgaço, regados com Porto, Madeira ou Colares, e se acabou advogado, gordo, em Braga, subindo, quase diariamente ao Bom Jesus a comer ostras - quando em Braga ainda se comiam ostras...
Fatal afirmação também:
"Não há dor que resista a um vinho ardente, nem ao fácil amor de uma Espanhola."

Guimarães, Março de 1999
Gonçalo dos Reis Torgal
Professor aposentado e confrade-mor da Confraria "Panela ao Lume"
Lido no Funchal, em Setembro de 2004, por ocasião do II Congresso da Federação das Confrarias da Gastronomia Portuguesa