terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Sucesso na alta cozinha depende cada vez mais da ciência


Uma bebida com várias camadas que só se misturam na boca ou um gelado branco com um intenso sabor a morango são propostas de cozinheiros que procuram na ciência técnicas culinárias inovadoras para transformar a refeição num espectáculo.
Nos últimos dez anos, por influência de novidades introduzidas pelo catalão Ferran Adrià, considerado o melhor cozinheiro do Mundo, a alta cozinha tem evoluído para técnicas antes limitadas aos laboratórios.
Da esferificação (transformação em bolinhas de líquidos como vinhos ou sumos) ao encapsulamento de sabores (concentração de um aroma através das moléculas) ou da utilização do azoto líquido (a 196 graus negativos, permitindo congelar produtos em segundos) à destilação por arrastamento de vapor (para extrair óleos essenciais de determinado alimento), os "chefs" da alta cozinha procuram inovar para proporcionar novas experiências e emoções ao cliente.
Paulina Mata, professora do departamento de Química da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, tem desenvolvido o seu trabalho na área da gastronomia molecular, colaborando com vários cozinheiros portugueses interessados nas novas técnicas que, defende, ainda estão pouco exploradas.
"Algumas pessoas assustam-se quando se fala em ciência e cozinha, mas a química está sempre presente" até porque cozer ou assar um alimento significa submetê-lo a um processo químico que vai transformar as suas propriedades, textura ou sabores, explicou Paulina Mata à agência Lusa, à margem do 10º congresso "O Melhor da Gastronomia", que reúne dezenas dos mais conceituados cozinheiros do Mundo, em San Sebastián, até quinta-feira.
A investigadora acredita que a cozinha actual não está muito longe do que se fazia na Idade Média e alerta que algumas das técnicas utilizadas no quotidiano, como fazer uma carne bem grelhada ou um pão bem torrado, "não passariam os testes de qualidade".
"Fazem-se coisas muito irracionais, há processos lentos, muito trabalhosos e que retiram grande parte do sabor. Existem processos muito mais eficientes", acrescenta.
É aqui que um cientista pode entrar na cozinha: a colaboração entre cientistas e cozinheiros pretende garantir que a alimentação é mais segura e mais correcta em termos dietéticos, obter melhores texturas e sabores e introduzir novas técnicas que não se utilizavam antes, sublinha a investigadora, responsável por sessões de divulgação e "workshops" sobre gastronomia molecular da Ciência Viva - Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica.
Enquanto um cozinheiro procura descobrir novas receitas e técnicas ao fim de inúmeras experiências, o cientista pode explicar-lhe por que razão os alimentos se comportam de determinada forma, simplificando assim os processos.
"Um ovo cozido a 68 graus fica diferente de um cozido a 70 graus. O cozinheiro pode chegar lá por tentativa e erro, mas a ciência pode dar essa resposta, porque há um conhecimento científico por trás", refere Paulina Mata.
Algumas das técnicas que actualmente já entraram nas cozinhas permitem criar géis líquidos, que não se misturam no copo mas na boca. O resultado pode ser um chá com uma metade quente e outra metade fria ou uma bebida com várias camadas perfeitamente diferenciadas.
O azoto líquido é um recurso já algo comum para muitos cozinheiros, que o utilizam, por exemplo, para criar um gelado em escassos minutos, "que tem características melhores que os gelados feitos por processos usuais, já que o azoto não introduz qualquer alteração ao alimento", segundo Paulina Mata.
A apresentação de vinhos ou sumos em bolinhas sólidas por fora e líquidas por dentro pode causar um grande espanto entre o público, mas a docente garante que o processo é semelhante à realização de uma gelatina, muito mais simples que "cozer um ovo", defende.
A destilação por arrastamento de vapor ou a pressão reduzida são processos "que se fazem muito nos laboratórios", mas que alguns cozinheiros já conhecem, permitindo extrair óleos essenciais ou aromas.
Outro exemplo é o encapsulamento de sabores, com que é possível apresentar um alimento com um aspecto totalmente distinto do usual, mas mantendo o seu sabor - como é o caso de uma sobremesa composta por um gelado branco com um fortíssimo sabor a morango, servido com uma gelatina vermelha com a aparência de morangos em calda, mas com sabor a chocolate branco.
"A alta cozinha pretende provocar sensações e emoções diferentes", até porque comer "já não é só uma necessidade, é um lazer e um acto social, como ir à ópera", aponta Paulina Mata.
"Se eu pago 500 euros por uma refeição, não é para me darem aquilo que como todos os dias em casa", defende.
No entanto, adverte a especialista, ainda estamos longe de ver as cozinhas transformadas em laboratórios: "actualmente estamos numa fase de alguma reacção e rejeição a técnicas que ainda não estão completamente exploradas".

Lusa

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