terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Na Madeira o Natal é a Festa


Os madeirenses são fiéis cumpridores das tradições natalícias, desde a decoração do pinheiro em casa, na confecção das iguarias típicas da quadra festiva, até aos rituais religiosos. Dos costumes pagãos aos religiosos, o madeirense tem sempre algo a dizer e a fazer. A Madeira sempre viveu com intensidade a quadra natalícia, denominada como "A Festa".
No Funchal, os preparativos da Festa tiveram início a meados de Novembro, com a iluminação de Natal, transformando a capital madeirense num autêntico presépio, com ruas enfeitadas e coloridas, obrigando de certa forma os lojistas a acompanhar a decoração nas montras. Em Dezembro, os trabalhos passam pela decoração das praças com flores, nomeadamente com manhãs de Páscoa, azevinho e sapatinhos. A juntar-se a isto, a placa central da Avenida Arriaga transforma-se por completo, convidando, não apenas os locais, mas sobretudo os forasteiros a celebrar o Natal, com todas as suas componentes, num trabalho etnográfico de apreciável qualidade.
Na realidade, as manifestações festivas nas ruas do Funchal surgiram na década de 30. Em 1932, foi criada uma Comissão das Festas da Cidade, que “tinha por missão coordenar todas as actividades de diversão”. Um organismo que viria a ser extinguido após a constituição do Governo Regional e da Secretaria Regional do Turismo, instituição que chamou a si a organização do Natal e Fim-de-Ano madeirense.
Hoje, sendo a Madeira uma Região turística, a convivência entre os locais e os estrangeiros é constante. 
Tal como antigamente, o Natal continua a ser a festa da família. No início de Dezembro, preparam-se todos os ingredientes para a Festa e marca também o início das missas do parto, que logo às primeiras horas da madrugada, reúne em cada paróquia centenas de pessoas, num convívio animado, dentro e fora da igreja, sendo tradicional a degustação de sandes de carne vinha d'alhos e canja, acompanhadas por vinho, licores ou cacau.
Em casa, é tempo das tradicionais limpezas, que incluem em muitos casos, a pintura interior das casas, para a recepção de familiares de outras zonas da ilha. É também no início de Dezembro que se prepararam os bolos e broas de mel, e ultimam-se os licores de diversos sabores. É igualmente a partir da primeira semana que se cumprem os rituais da função da morte do porco.
O ritual reúne vários elementos de uma prole, vizinhos e amigos, cada qual com uma função específica que vai desde a simples condução do animal entre o chiqueiro e a zona onde ocorrerá a morte, até ao corte da carne. Uma parte será para consumo ainda durante as festividades natalícias, mas o maior naco será cortado e salgado para conservação. Antes que o sangue coagule, deitam sal e benzem com um sinal de cruz, com uma faca, para que ninguém dê " mau olhado". Devidamente temperado com salsa e alho, o sangue é cozido e servido de seguida como dentinho (petisco) acompanhado por vinho seco ou aguardente, enquanto o porco é desamarrado e coberto por giesta ou urze para chamuscar o pêlo de ambos os lados. O recurso ao maçarico facilita a tarefa. Arrefecem com panos molhados, raspam a pele com utensílios laminados e lavam a carcaça. 
O porco é pendurado de cabeça para baixo para ser aberto ao meio, preso pelas patas traseiras, junto aos tendões. Com recurso a uma faca afiada e com um corte meticuloso, retiram o intestino e os restantes órgãos, como o coração, os pulmões e o fígado. Parte das carnes cortadas e das miudezas, servem para a refeição do final do dia. Uma espetada de carne com osso, e carne na panela, são confeccionados para todos os presentes que acompanham com pão caseiro, semilhas cozidas com casca temperadas com oregãos e o inhâme, sem faltar o vinho da casa.
 Enquanto todos confraternizam um dos elementos, o mais experiente no corte, procede à picada (corte e divisão): a febra para a carne vinho d'alhos do Natal, e a restante carne será salgada, incluindo a cabeça, as patas, as orelhas, a língua e o rabo. As tripas servem para os enchidos (bucho) e a banha é derretida para guardar e utilizar nos preparos da cozinha.
A noite do dia 23 de Dezembro tem passagem obrigatória pelo Mercado dos Lavradores, no Funchal. Em ambiente festivo, milhares de pessoas passeiam-se pelo interior e exterior do mercado, uns às compras de última hora, das frutas e legumes da época, de plantas para arranjos florais, enquanto a maioria procura simplesmente o convívio. As barracas de comes e bebes, estendem-se pelas ruas, circundantes ao mercado, fechadas ao trânsito. Canja de galinha, sandes de carne assada e de vinho d'alhos, fazem a alegria de todos.
Na noite de Natal, a missa do Galo é tradicionalmente participada por milhares de fiéis. No regresso a casa, trocam-se os presentes e servem-se em ambiente familiar a canja de galinha e bolos da festa.
No dia de Natal, a tradição gastronómica da Madeira revela-se diferente do restante território. Logo ao pequeno almoço, servem-se sandes de carne vinha d'alhos e cacau. Ao almoço, a galinha no forno e o lombo de porco assado, assumem a preferência dos madeirenses. Por norma, são escolhidas as melhores galinhas de casa, preparadas de véspera. O bacalhau e o peru têm ganho o seu espaço, sobretudo nas gerações mais novas e por influência das grandes superfícies de distribuição alimentar.
A 26 de Dezembro, "Primeira Oitava", manda a tradição que toda a família conviva numa das suas casas, num repasto em que voltam a entrar as carnes de porco, nomeadamente a carne vinha d'alhos, com semilhas cozidas e legumes. A variedade gastronómica depende muito da produção caseira e da localidade. A carne de vaca assada, o peru, o peixe-espada preto e o bacalhau também compõe o menu do dia.
O Natal, ou a Festa, mantêm o seu espírito intacto, com mais ou menos consumismo. As tradições ainda vivem, com uma ou outra mutação, nas ruas ou em casa.

Miguel Fernandes

Sucesso na alta cozinha depende cada vez mais da ciência


Uma bebida com várias camadas que só se misturam na boca ou um gelado branco com um intenso sabor a morango são propostas de cozinheiros que procuram na ciência técnicas culinárias inovadoras para transformar a refeição num espectáculo.
Nos últimos dez anos, por influência de novidades introduzidas pelo catalão Ferran Adrià, considerado o melhor cozinheiro do Mundo, a alta cozinha tem evoluído para técnicas antes limitadas aos laboratórios.
Da esferificação (transformação em bolinhas de líquidos como vinhos ou sumos) ao encapsulamento de sabores (concentração de um aroma através das moléculas) ou da utilização do azoto líquido (a 196 graus negativos, permitindo congelar produtos em segundos) à destilação por arrastamento de vapor (para extrair óleos essenciais de determinado alimento), os "chefs" da alta cozinha procuram inovar para proporcionar novas experiências e emoções ao cliente.
Paulina Mata, professora do departamento de Química da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, tem desenvolvido o seu trabalho na área da gastronomia molecular, colaborando com vários cozinheiros portugueses interessados nas novas técnicas que, defende, ainda estão pouco exploradas.
"Algumas pessoas assustam-se quando se fala em ciência e cozinha, mas a química está sempre presente" até porque cozer ou assar um alimento significa submetê-lo a um processo químico que vai transformar as suas propriedades, textura ou sabores, explicou Paulina Mata à agência Lusa, à margem do 10º congresso "O Melhor da Gastronomia", que reúne dezenas dos mais conceituados cozinheiros do Mundo, em San Sebastián, até quinta-feira.
A investigadora acredita que a cozinha actual não está muito longe do que se fazia na Idade Média e alerta que algumas das técnicas utilizadas no quotidiano, como fazer uma carne bem grelhada ou um pão bem torrado, "não passariam os testes de qualidade".
"Fazem-se coisas muito irracionais, há processos lentos, muito trabalhosos e que retiram grande parte do sabor. Existem processos muito mais eficientes", acrescenta.
É aqui que um cientista pode entrar na cozinha: a colaboração entre cientistas e cozinheiros pretende garantir que a alimentação é mais segura e mais correcta em termos dietéticos, obter melhores texturas e sabores e introduzir novas técnicas que não se utilizavam antes, sublinha a investigadora, responsável por sessões de divulgação e "workshops" sobre gastronomia molecular da Ciência Viva - Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica.
Enquanto um cozinheiro procura descobrir novas receitas e técnicas ao fim de inúmeras experiências, o cientista pode explicar-lhe por que razão os alimentos se comportam de determinada forma, simplificando assim os processos.
"Um ovo cozido a 68 graus fica diferente de um cozido a 70 graus. O cozinheiro pode chegar lá por tentativa e erro, mas a ciência pode dar essa resposta, porque há um conhecimento científico por trás", refere Paulina Mata.
Algumas das técnicas que actualmente já entraram nas cozinhas permitem criar géis líquidos, que não se misturam no copo mas na boca. O resultado pode ser um chá com uma metade quente e outra metade fria ou uma bebida com várias camadas perfeitamente diferenciadas.
O azoto líquido é um recurso já algo comum para muitos cozinheiros, que o utilizam, por exemplo, para criar um gelado em escassos minutos, "que tem características melhores que os gelados feitos por processos usuais, já que o azoto não introduz qualquer alteração ao alimento", segundo Paulina Mata.
A apresentação de vinhos ou sumos em bolinhas sólidas por fora e líquidas por dentro pode causar um grande espanto entre o público, mas a docente garante que o processo é semelhante à realização de uma gelatina, muito mais simples que "cozer um ovo", defende.
A destilação por arrastamento de vapor ou a pressão reduzida são processos "que se fazem muito nos laboratórios", mas que alguns cozinheiros já conhecem, permitindo extrair óleos essenciais ou aromas.
Outro exemplo é o encapsulamento de sabores, com que é possível apresentar um alimento com um aspecto totalmente distinto do usual, mas mantendo o seu sabor - como é o caso de uma sobremesa composta por um gelado branco com um fortíssimo sabor a morango, servido com uma gelatina vermelha com a aparência de morangos em calda, mas com sabor a chocolate branco.
"A alta cozinha pretende provocar sensações e emoções diferentes", até porque comer "já não é só uma necessidade, é um lazer e um acto social, como ir à ópera", aponta Paulina Mata.
"Se eu pago 500 euros por uma refeição, não é para me darem aquilo que como todos os dias em casa", defende.
No entanto, adverte a especialista, ainda estamos longe de ver as cozinhas transformadas em laboratórios: "actualmente estamos numa fase de alguma reacção e rejeição a técnicas que ainda não estão completamente exploradas".

Lusa